Métodos
Tudo se passa a partir “do ir para e vir de” um quilombo chamado Itamatatiua, localizado em Alcântara, no estado do Maranhão (Brasil), uma comunidade liderada por Neide de Jesus, filha de Eurico de Jesus, que a mais de três séculos existe e resiste lutando pela continuidade de seus saberes e fazeres, entre tantos, destaca-se a produção de artefatos cerâmicos, um ofício oriundo dos ancestrais, escravos que viviam naquelas terras.






O projeto nos mostrou que uma das formas de resistência está também na identificação de seus desafios internos, tais como: a necessidade de agir junto às gerações mais novas para manter a cultura local. O distanciamento das novas gerações das manifestações culturais do território advindas dos ancestrais consiste em um problema que poderá resultar em impactos socioculturais e econômicos. Aqui falamos de território no sentido de territorialidade que reflete o sentimento de pertencimento como algo atrelado ao local onde se vive independentemente da situação geográfica, graças às motivações e interesses em comum como sinais agregadores e de revitalização das Identidades locais e de laços comunitários ou identidade cultural comunitária (SGOTI, 2016).



Nesse sentido, entendemos que a educação, base da formação do cidadão, considerando não apenas ações nas escolas, mas também os diversos espaços de produção e divulgação da cultura, necessita de constante inovação nos instrumentos ou ferramentas estratégicas que venham valorizar os povos culturalmente diferenciados e seus territórios. Na perspectiva da sustentabilidade cultural importa o olhar para a geração atual e futura, sem perder de vista o diálogo constante do idoso com esses jovens e crianças de modo que esses sejam levados ao conhecimento, valorização e respeito às diversidades etnicoculturais e à consciência da importância da continuidade dos saberes e práticas, em um processo de intergeracionalidade, que identificam pessoas e seus territórios.





Assim começa a história do projeto de extensão “Era uma vez Itamatatiua…”, fruto de uma inquietação: buscar formas de instrumentalizar a educação quilombola com vistas na sustentabilidade cultural. Fazer isso de modo que não fosse colaborativo era algo que não cabia para estes pesquisadores. Assim, o projeto de extensão de caráter multidisciplinar foi realizado por uma rede de vidas, histórias e conhecimentos.



Para Amado e Cardoso (2014), uma investigação colaborativa implica no envolvimento entre investigadores e investigados. No entanto, não significa dizer que cada participante tenha a mesma função na tomada de decisões durante todas as etapas ou fases do estudo, a definição das funções depende das necessidades e da situação, e o desenvolvimento da pesquisa ocorre mediante a comunicação em uma rede de colaboração estabelecida entre os envolvidos no estudo.





O projeto de extensão recai sobre o método pesquisa-ação, pois propõe interações e interlocuções em um encontro entre o conhecimento tácito e acadêmico que resultem em planejamento de ações para a instrumentalização da educação quilombola e transmissão intergeracional de conhecimentos acerca dos saberes e práticas do quilombo com o intuito de contribuir para a sustentabilidade cultural local.
Durante o período de viagens ao quilombo foram elaboradas e aplicadas oficinas visando o compartilhamento das histórias do quilombo de Itamatatiua entre gerações em espaços da comunidade destinados à educação formal e informal, em especial: a escolar e o Centro de Produção de Cerâmica.



Realizamos três viagens no período de janeiro de 2020 até março de 2020. Depois, devido à pandemia do novo Coronavírus, repensamos nossas práticas e adaptamos os procedimentos para a realização da quarta viagem, seis meses depois, em setembro de 2020. No ano de 2021 nos concentramos em trabalhos no modo remoto e somente neste ano (2022), em nossa quinta viagem, houveram novos encontros presenciais.
Sistematizamos no diagrama abaixo a realização das cinco viagens já realizadas até aqui e que serão descritas considerando três momentos, a citar: 1) pré-viagem, consiste no momento destinado a reflexões e planejamentos 2) viagem, trata das ações com a comunidade e observações “in loco” 3) pós-viagem, aborda o retorno seguido do processamento e sistematização dos dados obtidos em registros audiovisuais. O término do último momento nos levava ao primeiro em um fluxo "prático reflexivo", inerente à pesquisa ação (COUTINHO, 2013), de modo que os dados obtidos em uma fase servirão de base para planejar, aplicar e analisar ações.





Nossas práticas estão respaldadas nas premissas da pesquisa-ação, apoiadas em Amado e Cardoso (2014) e envolvendo a relação colaborativa entre extensionistas, escola e comunidade. Visto que pretendia gerar resultados advindos da aplicação prática da abordagem sistêmica e gestão do Design, com base nas pesquisas do NASDesign/UFSC dirigidas à solução de problemas específicos em comunidades, no caso deste projeto, a geração de meios para fomentar a educação quilombola e a sustentabilidade cultural no quilombo de Itamatatiua.
As fases do trabalho em uma investigação-ação na escola relatadas por Amado e Cardoso (2014,p.193-194) consistem em criar a equipe; selecionar o foco da investigação e estudo da literatura disponível; recolher os dados a partir de uma variedade de fontes, usando as técnicas habituais dos estudos etnográficos e/ou dos estudos de caso; analisar, documentar e rever os efeitos imediatos, cumulativos e de longo tempo das ações dos alunos e dos professores; desenvolver e implementar as categorias interpretativo-analíticas; organizar e interpretar os dados, agrupando circunstâncias, acontecimentos e artefatos de modo interconectado e sistemático; agir na base de planos redefinidos a curto e/ou longo prazo; repetir o ciclo.
O diário de campo aqui utilizado é ferramenta de investigação colaborativa e tornou-se produto dela. Escrito por diversas mãos, nele encontramos os quilombolas, não como sujeitos investigados, mas como sujeitos ativos, produtores de conhecimento e com “voz” a ser ouvida. Durante as interações entre os participantes nos interessava, em especial, as falas de quem faz e conhece a história das práticas voltadas à produção artesanal tradicional e também a oratória e expressões bi e tridimensionais das crianças em interlocuções entre gerações desse território. Somamos “os investigadores e o seu conhecimento de especialistas, por um lado, e investigados com o seu conhecimento local e da prática, por outro.” (AMADO; CARDOSO, 2014, p.191).
Nesse interim, as crianças compreendidas como atores sociais, com voz e ação, e participantes do processo de investigação “com competências e saberes específicos e com capacidades de escolha e de decisão de determinados rumos do projeto” (AMADO; CARDOSO, 2014, p.192) também colaboraram e determinaram a pesquisa-ação com o suporte de técnicas de contação de história.









A opção metodológica recaiu também sobre a História Oral, pois através das narrativas, obtidas in loco, buscamos, apoiados em Freitas (2006), Alberti (2004) e Meihy e Ribeiro (2011), apreender e registrar experiências e ideias relativas aos saberes e fazeres tradicionais do quilombo, tendo um olhar especial sobre os aspectos influenciadores da continuidade dessas tradições. A história Oral, que envolve não apenas o registro de narrativas, mas também o exercício do observar abrindo nosso olhar sobre a emoção e sentimentos do outro que nos fala, nos permitiu aproximações ao conhecimento e imaginário do quilombo e ofereceu subsídios ao resgate ou renovação da cultura que os representa em suas formas tangíveis (cultura material) ou intangíveis (cultura imaterial). O tangível se manifesta em suas imagens formuladas e concretizadas nos artefatos produzidos pelos membros desse agrupamento, por sua vez o intangível apresenta-se no imaginário expressado nas narrativas acerca do conhecimento tradicional e modo de viver.
Contar histórias é uma prática que se encontra em todos os segmentos da humanidade e faz parte de uma tríade mínima de comunicação formada por: emissor, mensagem e receptor. A expressão comunicação “deriva do latim e significa tornar comum, partilhar, voltando, assim, à ideia de circulo, de ir e vir.” (MEDEIROS E MORAES, 2015, p.11). O contar apresenta delimitações temporais e espaciais e se constitui no ato de intercambiar experiências que são passadas de uma pessoa para outra envolvendo narrativas e registros.
Ao tratar da palavra falada, Hampâté Bâ (2015), considera que o respeito pela palavra nas sociedades de tradição oral está, principalmente, no ato de transmissão das palavras herdadas de ancestrais ou de pessoas idosas. Frases como “Aprendi com meu mestre”, “Aprendi com meu pai” (HAMPÂTÉ BÂ, 2015. p.161) foram ouvidas por nós em Itamatatiua, confirmando o autor citado sobre a educação que ocorre durante a vida inteira.
Narrar sobre modos de viver e produzir, diz respeito não apenas às memórias do passado, mas também ao presente e futuro. Ao provocar os observadores, em um processo contínuo de transferência de experiências e educação que não se encerra em si, realizamos um intercâmbio de informações entre culturas e gerações diversas. Para a explicação do presente a tradição oral necessita da retomada de aspectos transmitidos por outras gerações, dá-se empréstimo do patrimônio narrativo alheio, quase sempre herdado dos velhos.




Dona Iracema






Denise de Jesus






Surica






Maria Januário






Eloísa






Neide





Link para acesso aos depoimentos: https://www.youtube.com/channel/UCu2w8RW7yYLSBqk18IDMs5w


A ação de contar envolve o compartilhamento de narrativas próprias da cultura de um dado grupo social e, de modo geral, essa técnica permite aos participantes aproximações em um processo de acesso ao passado, reflexões sobre o presente para posteriormente vislumbrar-se futuros. Técnicas de contação de histórias dão suporte ao método história oral e na sala de aula torna-se um recurso de aproximação e construção de teias de diálogos envolvendo alunos, professores, livros e narradores em uma mesma conversa cultural (SANTHIAGO E MAGALHÃES, 2015). Porém, enfatizamos, a escola é uma resposta, porém existem outras já utilizadas pelas sociedades tradicionais.
No processo de contar, conforme Noronha (2019), ocorre a abertura de acontecimentos de um dado grupo social aos atores externos. A pesquisadora acrescenta, com base em (INGOLD, 2016, p. 408), que há participação ativa dos atores envolvidos na pesquisa com observação participante, também realizada por nós. Essa é uma prática de correspondência, na qual somos afetados e ao mesmo tempo afetamos uma dada realidade, portanto, não ocorre de forma isolada. O designer/pesquisador é coparticipante nos processos que não se limitam às descrições de fenômenos, “Trata-se, pelo contrário, de responder a esses acontecimentos por meio das próprias intervenções, questões e respostas. Em outras palavras, viver atencionalmente com outros.” Isso implica em identificar os saberes e práticas de um grupo social como formas autônomas de produzir que inspiram, nos trazem aprendizados, e nos levam a pensar sobre novas formas de design e contribuições, mediante pesquisas e ações, em um país rico em diversidades étnicas e culturais. Neste contexto, consideramos a educação institucionalizada ou formal e a educação tradicional ou informal advinda das práticas de transmissão de conhecimentos adotadas por comunidades étnicas como Itamatatiua.
Entendemos que os processos metodológicos aplicados à pesquisa em Design não foram aleatórios e podem valorizar a auto representação dos remanescentes do quilombo como estratégia para geração de meios que venham contribuir para a sustentabilidade cultural de comunidades étnicas. São, portanto, referenciais de uso na prática extensionista pretendida, oficinas de contação de histórias no espaço escolar, cuja operacionalização, de forma mais específica, apresenta fases, etapas e procedimentos descritos aqui e continuando o movimento cíclico da pesquisa-ação.





REFERÊNCIAS
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GRAY, D. BROWN, S. E MACANUFO, J. Gamestorming: jogos corporativos para mudar, inovar e quebrar regras. Rio de Janeiro, RJ: Alta Books, 2012. 284 p.
HAMPÂTÉ BÂ, A. A tradição viva. p 155 - 188. in MEDEIROS, F.H.N.; MORAES, T.M.R. Contação de histórias: tradição, poéticas e interfaces. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015. – 544pp.
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JESUS, Eloisa de: depoimento [jan.2020]. Entrevistadores: G. Cestari, T.Lima, J.Mendes, J.Campos, E.Veloso, M.Romeiro, A.Linhares. Itamatatiua, 2020. Entrevista concedida a Pesquisa Intergeracionalidade e Sustentabilidade Cultural em um Quilombo Maranhense: contação de histórias e oficinas no espaço escolar de Itamatatiua na perspectiva da gestão e abordagem sistêmica do design. IFMA-CH/UFSC.
JESUS, Iracema de: depoimento [jan.2020]. Entrevistadores: G. Cestari, T.Lima, J.Mendes, J.Campos, E.Veloso, M.Romeiro, A.Linhares. Itamatatiua, 2020. Entrevista concedida a Pesquisa Intergeracionalidade e Sustentabilidade Cultural em um Quilombo Maranhense: contação de histórias e oficinas no espaço escolar de Itamatatiua na perspectiva da gestão e abordagem sistêmica do design. IFMA-CH/UFSC.
JESUS, Maria Januario de: depoimento [jan.2020]. Entrevistadores: G. Cestari, T.Lima, J.Mendes, J.Campos, E.Veloso, M.Romeiro, A.Linhares. Itamatatiua, 2020. Entrevista concedida a Pesquisa Intergeracionalidade e Sustentabilidade Cultural em um Quilombo Maranhense: contação de histórias e oficinas no espaço escolar de Itamatatiua na perspectiva da gestão e abordagem sistêmica do design. IFMA-CH/UFSC.
JESUS, Neide de: depoimento [jan.2020]. Entrevistadores: G. Cestari, T.Lima, J.Mendes, J.Campos, E.Veloso, M.Romeiro, A.Linhares. Itamatatiua, 2020. Entrevista concedida a Pesquisa Intergeracionalidade e Sustentabilidade Cultural em um Quilombo Maranhense: contação de histórias e oficinas no espaço escolar de Itamatatiua na perspectiva da gestão e abordagem sistêmica do design. IFMA-CH/UFSC.
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